Tim Vickery: A tribo que me permite ser, ao mesmo tempo, inglês e cosmopolita

Tim Vickery

Crédito, Eduardo Martino

    • Author, Tim Vickery
    • Role, Colunista da BBC Brasil*

De todas as tribos culturais britânicas, talvez a mais importante - e com certeza aquela com que eu mais me identifico - seja pouco conhecida no Brasil. Chama-se "mod", e acredito que renda uma comparação interessante com a bossa nova brasileira, que no auge também se apresentava como um movimento.

As duas nasceram depois da Segunda Guerra Mundial de um desejo de abraçar o "moderno", leve, limpo, sofisticado. A turma da bossa nova queria distância de um Brasil atrasado e rústico - como Ruy Castro escreve em Chega de Saudade, foi uma reação contra "aquela infernal mania nacional pelo acordeão… (que) parecia transformar o Brasil numa permanente festa junina".

Enquanto isso, também no final dos anos 50, os mods britânicos deram as costas às limitações de um país cinzento. Tratava-se da primeira geração não minada pela pobreza e capaz, em consequência, de fazer a pergunta existencial: como viver?

A busca por tal modernidade, 60 anos atrás, automaticamente implicava uma curiosidade com os Estados Unidos e a sua sociedade de massa. A bossa nova tem uma conexão forte com o jazz - o senso harmônico foi tirado do disco Julie is Her Name, de Julie London, e, mais importante ainda, a seu guitarrista Barney Kessel.

Os mods curtiam o jazz moderno (daí o seu nome) em oposição ao jazz tradicional e tinham Miles Davis entre seus principais ídolos.

Mas os dois movimentos fizeram muito mais do que imitar.

A bossa nova também trabalhava dentro de uma linha de samba e criou um gênero inédito, apresentando uma nova batida na guitarra.

Os mods tomaram a sua música dos Estados Unidos; seu estilo de roupa, corte de cabelo e lambretas da Itália e da França, mas colocavam o conjunto dentro de um pacote claramente britânico, como um código ou estilo da vida que cultivava o bom gosto de uma maneira nova e popular.

Mods na Inglaterra nos anos 1960

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Os mods com suas lambretas, nos anos 1960; grupo tem semelhanças com a bossa nova, diz colunista

Os dois compartilhavam de uma celebração ao otimismo. A bossa nova detestava a melancolia barata de "ninguém me ama", enquanto os mods disfrutaram das possibilidades novas de um mundo colorido, com homens vestindo roupas até cor-de-rosa com uma arrogância de quem cria as suas próprias regras.

O enfoque da bossa nova era mais restrito à música, sem a tara dos mods por roupa (embora João Gilberto quase não tenha subido ao palco naquele show famoso no Carnegie Hall porque estava insatisfeito com o vulco da sua calça) e não tinha a mesma força como estilo de vida.

Verdade, a turma da bossa desempenhava um papel pioneiro em curtir o mar vestindo short de surfista. Mas isso - e agora estamos entrando na grande diferença entre os dois movimentos - era um estilo de vida disponível a poucos naquela época.

Porém, estamos falando de realidades bastante distintas: por um lado, um país desenvolvido em plena reconstrução depois da guerra. De outro, um do terceiro mundo, com distribuição de renda muito mais desigual e com a infelicidade de sofrer com a Guerra Fria.

Na Inglaterra, tratava-se do melhor momento de nascer na classe operária. A sociedade estava progredindo, sem desemprego e com mais oportunidades em áreas novas, como a publicidade. Havia, portanto, poucas barreiras impedindo que o movimento mod se espalhasse. A princípio, eram basicamente estudantes de arte. Logo, virou um fenômeno de massa, evoluindo sempre.

Com o tempo, jazz moderno deu lugar ao R&B, mais dançante e acessível (acho que é a música que mais serve como trilha sonora do movimento, pois mistura um pouco o jazz com soul, é Green Onions, de Booker T and the MGs).

Logo, surgiram bandas locais que, iniciando uma tentativa de imitar os seus heróis americanos, acabaram levando a coisa mais pelo rock (Small Faces, por exemplo, ou os primeiros anos do The Who).

Mods em praia inglesa em 1964

Crédito, PA

Legenda da foto, Mods em praia inglesa em 1964; tratava-se do melhor momento de nascer na classe operária

E com aquela velocidade de mudança incrível dos anos 60, o movimento acabou se separando. O lado mais artístico, mais dandi e com frequência mais classe média passou por várias evoluções, da psicodelia até uma estética hippie. Os outros, alienados a tudo isso, desenvolveram uma tribo que era quase uma paródia de valores proletários - os skinheads.

Logo surgiu mais uma evolução. As grandes estrelas do Glam Rock, David Bowie e Marc Bolan, eram ex-mods que agora pegavam a tendência do movimento de permitir o homem a virar pavão e a levaram para a extrema androginia.

Mas no Brasil uma linha parecida de evolução não foi possível com a bossa nova.

Primeiro, porque, numa sociedade de hierarquias tão rígidas, o estilo de vida da turma da bossa nova estava fora do alcance da grande maioria da população.

E segundo porque logo o movimento teve que lidar com o clima político do golpe de 1964. Uma estética de mar, areia e amor não parecia adequada, especialmente num ambiente em que tanto a direita quanto a esquerda se proclamavam nacionalistas.

O lado jazz da coisa, portanto, era mal visto. Tirando o jazz, nasceu a MPB como uma expressão mais "nacional" e muitos da turma da bossa nova e sambalanço, a sua evolução mais animada, passaram a ganhar a vida no exterior.

Confesso que não consigo me libertar dessa época. Parece uma contradição gritante curtir com cinco décadas de atraso um movimento que valorizava o moderno.

Por outro lado, esses valores ainda são atuais.

O mod me deu - e me dá - um código que me permite ser ao mesmo tempo inglês e cosmopolita. E é sempre saudável ter uma ligação com uma época dourada da humanidade.

*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick.

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