Tim Vickery: Corrupção no Brasil não é culpa de apenas alguns frutos podres

Crédito, Eduardo Martino
- Author, Tim Vickery
- Role, Colunista da BBC Brasil*
Um século atrás, a necessidade de se organizar para lutar na Primeira Guerra Mundial forçou grandes mudanças na política britânica.
O velho Estado mínimo, de "laissez-faire", já não dava conta. Para combater os alemães, era preciso mobilizar todos os recursos da sociedade industrial - um processo que também modificou totalmente o cenário político.
Foi o fim do poder do Partido Liberal, que governava sozinho no início do conflito e nunca mais chegou perto disso. Mas foi um liberal - um advogado carismático e dinâmico do País de Gales chamado David Lloyd George - que se tornou primeiro-ministro e encabeçou o novo governo de coalizão.
Depois da guerra, Lloyd George passou a gozar de grande prestigio, mas tinha um problema enorme.
Com o Partido Liberal dividido e em cacos, sua coalizão dependia dos conservadores, decididos a recuar das políticas de intervenção estatal do premiê. Lloyd George prometera "um lar para heróis", mas não dispunha mais dos meios para criá-lo.
Acabou ficando em posição fraca, sobretudo pela ausência de uma máquina partidária para apoiá-lo.
Na tentativa de manter sua força, apelou para uma solução: a corrupção.

Até hoje existem muitos ingleses obcecados com títulos oficiais - sir, barão, etc. Por um intermediário, Lloyd George vendia esses títulos para arrecadar dinheiro. Era, nas palavras dele próprio, "a maneira mais limpa de financiar a política".
Há apenas uma década, houve um repeteco desse caso. Durante o governo de Tony Blair, aconteceu o escândalo "Cash for Honours" - acusações da venda de títulos de nobreza para levantar verbas para o partido dele.
As investigações acabaram dando em nada - afinal, ficou muito difícil provar que os títulos tinham sido obtidos em uma troca explícita para verbas. Mas não ha dúvidas de que Blair, que foi chamado para depor várias vezes, saiu com a imagem arranhada.
Havia uma semelhança com o caso de Lloyd George. Blair também era um "outsider". Seu Partido Trabalhista foi historicamente bancado pelos sindicatos. Mas Blair, ansioso por ocupar uma posição centrista, falava toda hora em Novo Trabalhismo e buscava diminuir a dependência dessa fonte.
E se a grana não vinha dos sindicatos, viria de quem? O seu Novo Trabalhismo, então, foi atrás dos ricaços - e alguns desses obviamente iam querer alguma coisa em troca de suas doações.
A ganância humana é sempre presente, mas suas consequências ilícitas não são tão constantes. Respondem a estímulos e oportunidades. Os casos e desconfianças citados acima servem como exemplos do aspecto sistêmico da coisa - algo que, acredito, seja bom lembrar na atual situação brasileira.
A corrupção por aqui não é culpa de apenas algumas pessoas podres. E atribuir o fenômeno somente a um fruto envenenado de uma herança das capitanias hereditárias é uma análise preguiçosa demais para explicar tudo.

Crédito, AFP
Existe um forte componente sistêmico. Como uma fonte bem conectada me explicou dez anos atrás, a corrupção no Brasil era o combustível, sem o qual ficava difícil tocar para frente - algo incentivado por um cenário politico em que a fragmentação de partidos transformou a governabilidade em uma commodity negociável.
Acredito, então, que até mais importante do que ver os culpados atrás das grades é focar em tornar o sistema mais representativo e transparente, que não acabe por corromper até mesmo quem entra na vida pública sem a ambição de enriquecer.
Nenhum sistema político vive em isolamento de sua sociedade. Os valores, os sonhos e medos de um povo se fazem sentir nos bastidores do poder - e aqui, também, acredito que os exemplos da Inglaterra sejam válidos.
O governo de Lloyd George após a Primeira Guerra Mundial enfrentava uma forte tensão social - crise de desemprego, crise de pobreza, escassez de recursos e uma grande decepção de que nem a sangria da guerra havia conseguido produzir um mundo melhor. O governo chegou a debater seriamente a ideia de mandar a Força Aérea atacar os grevistas. Temia-se que a revolta tomasse dimensões revolucionárias.
Nada disso se aplicou aos anos de Tony Blair. Mas o que é impressionante da época deste é o surgimento dos super-ricos, uma classe global de bilionários ansiosos por adquirir residências em Londres - e esse estilo de vida se tornou patamar para muitos na vida pública.
Os casos de corrupção, tanto os de um século quanto os de uma década atrás, vêm de momentos de desigualdade muito forte. E o abismo social vira um fator propulsor da corrupção.
Por um lado, tem o sonho: "eu tenho direito a essa grana extra porque eu mereço ter uma vida padrão super-rico". Por outro lado, tem o medo: "eu tenho que aproveitar essa oportunidade, senão como vou poder pagar aquele plano de saúde na minha velhice?".
Os dois são nocivos. A luta contra a corrupção, então, começa pela batalha por uma sociedade mais igualitária. Uma sociedade desigual tende a chafurdar numa lama de falta de ética.
*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick.
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