Tim Vickery: Como a rejeição pelas Forças Armadas em plena 2ª Guerra mudou a vida do meu pai

Crédito, Eduardo Martino
- Author, Tim Vickery
- Role, Colunista da BBC Brasil*
Impressionante como um evento tem o poder de definir uma vida. No caso do meu pai, este evento é a Segunda Guerra Mundial.
O meu velho, que faleceu em 2008, faria 93 anos na semana que vem. Ele estava com 15 quando o conflito começou, em 1939. Poucos meses depois, foi "espectador de luxo" de um momento determinante. Os nazistas estavam planejando uma invasão. Mas, primeiro, tiveram que dominar os céus, destruindo a Força Aérea britânica.
No verão de 1940, os olhos impressionados do meu pai, voltados para cima, viram uma luta importante, mas com poucos participantes. Os dois lados competiam pela superioridade no ar - um tipo de duelo medieval com aviões.
Meu pai esticava o pescoço para enxergar melhor - e sonhava em virar um piloto, dirigindo o seu Spitfire contra os alemães.
Mas ele não enxergava bem o suficiente. Chegou aos 17 anos, idade da convocação, e teve que enfrentar um problema: era bastante míope e não podia ser piloto. Não podia fazer parte nem da Força Aérea, nem da Marinha, nem do Exército.
Em vez disso, fora do expediente, meu pai fazia parte do Home Guard - o famoso Dad's Army (Exército dos Pais, em tradução livre), uma brigada de defesa civil formada principalmente por homens que eram velhos demais para as forças armadas.
Ele passava as noites atirando - o que achava pouco útil - contra os aviões alemães bombardeando Londres.

Crédito, Arquivo pessoal
Durante o dia, ele trabalhava como desenhista no arsenal de Woolwich, no sul de Londres, fazendo imagens de armamentos. Não tinha talento para a função, mas não foi por causa disso que recusou um aumento.
Foi uma coisa muito dele, uma mistura de nobilidade, ingenuidade e teimosia, e criou uma dor de cabeça burocrática do nada. O que diabos fazer quando um funcionário não aceita um aumento? O sistema não está preparado para uma situação como essa.
Ele recusou - e permaneceu firme na postura - porque sentia que não estava merecendo. Enquanto a sua geração estava lutando, correndo risco de não voltar para a casa, ele não achava justo receber um aumento. Sentia-se inútil.
Meu pai viveria mais seis décadas, mas nunca perdeu totalmente o sentimento de vergonha e a amargura de ser rejeitado pelas Forças Armadas em um momento de crise nacional. Ele cresceu em meio à grande causa moral da época moderna, mas não podia ter um papel de destaque.
Depois da guerra a economia melhorou e houve mais oportunidades. Até para ele, um garoto de família pobre. Ele tinha um pouco de escolaridade e uma mente aguda, mas, minado por uma falta de autoestima e um sentimento de não merecimento, não aproveitou. Não sabia o que queria ser.
O seu pai era mestre de obras de uma empresa de mudanças, e ele conseguiu um trabalho na mesma empresa. Aprendeu sobre móveis e ganhou a vida vendendo-os numa loja. Poderia ter sido mais.

Crédito, PA
Meu pai se expressava no esporte - que na Inglaterra, naquela época, queria dizer futebol no inverno e críquete no verão. Ele era um bom atleta, o que fazia da sua rejeição militar algo ainda mais difícil de engolir, e usou o esporte para provar a sua capacidade, talvez até para si mesmo.
Sua dedicação era claramente, e ele sabia disso, uma reação a ter sido rejeitado na guerra.
Ele era um homem misterioso e difícil de conhecer. Só se casou aos 40 anos - algo incomum na época -, e desconfio que foi porque estava percebendo que seu tempo como esportista chegava ao fim.
Como atleta, meu pai foi um jogador "quase": talentoso, mas não o suficiente para ser profissional. Como primeiro filho, nasci com a obrigação de realizar os seus sonhos.
Garotos da classe média sofriam pressão para se destacar como alunos. Eu não. Só sofria pressão para ter um bom desempenho em campo.
Não deu. Herdei o interesse, mas não o talento.

Crédito, Getty Images
Lembro-me da primeira vez que voltei para a casa do meu pai depois de mudar para o Brasil. Ele, que sonhava conhecer a Austrália, mas nunca foi além de um fim de semana na Irlanda, só tinha uma pergunta a me fazer: "Você está jogando bola?".
Para explicar a importância dessa pergunta para ele, é preciso ir lá atrás e examinar o que aconteceu com ele e como isso o afetou.
A história sempre tem consequências. Essa é somente a história dele. Não é muito dramática, tem outros com relatos muito mais emocionantes. Mesmo assim, merece ser contada.
Porque ele, junto com a maioria da sua geração, não está mais aqui para contá-la. Para que suas vidas não caiam no esquecimento, a tarefa cabe a nós.
*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick.
Leia colunas anteriores de Tim Vickery:
- Por que o Bolsa Família é mais polêmico que as pensões militares?
- Para ser 'do bem', é preciso ser bem mais do que 'de família'
- A ideia de que a iniciativa privada é sempe melhor é uma grande falácia
- Beatles tratavam a música negra com respeito - e aí está parte da explicação de seu sucesso
- Como vim ao Brasil para fugir da tirania do inverno, me nego a reclamar do calor
- Quem aplaude massacre de presos já teve o senso ético decapitado, o coração arrancado
- George Michael teve de buscar sua própria verdade para virar um artista
- A queda da centro-esquerda, Trump e a conta que os pobres não pediram, mas terão de pagar
- Resposta à tragédia da Chapecoense mostra que quase todas as terras são países do futebol
- O que a banda The Sex Pistols e a redemocratização brasileira têm em comum
- Por que quem exige homenagens aos mortos da guerra não quer o mundo justo pelo qual lutaram?












